Importante pronunciamento do Embaixador do Brasil na França onde defende a parceria dos dois países no desenvolvimento de projetos de defesa e de transferência de tecnologia.
Seminário “Indústria
aeronáutica e de defesa no Brasil: oportunidades para a Parceria Estratégica
Brasil-França”
Embaixador José Maurício
Bustani
18/6/2013
Esse é um testemunho que me sinto
especialmente autorizado a fazer, após ter completado cinco anos como
Embaixador do Brasil em Paris e47anos no serviço exterior
do Estado brasileiro, dos quais cinco na chefia da OPAQ, período no qual pude
conhecer intimamente as entranhas do palco internacional e os instrumentos que
seus grandes atores costumam utilizar na defesa egoísta dos seus interesses.
Pude até conhecer a dolorosa experiência de ver minha imparcialidade
injustamente punida. Darei, portanto, um testemunho político, de um servidor
público apenas preocupado com o futuro do seu país.
O Brasil
encontra-se em plena transformação. Nos últimos anos, conquistou avanços
consideráveis em termos de crescimento econômico com justiça social e
consolidação democrática. Emergiu como a sexta economia mundial e um dos polos
de uma ordem multipolar em construção.
A emergência
do Brasil trouxe, contudo, ao País o desafio de superar sua própria emergência
e, assim, de construir-se como uma potência, dotada de todos os instrumentos
militares, tecnológicos e industriais indispensáveis a essa condição.
Para tanto, a
escolha de autonomia industrial em matéria de defesa, aeronáutica e espaço revela-se
essencial. Uma indústria aeronáutica, espacial e de defesa independente, além
de ser elemento motor do desenvolvimento nacional, permite autonomia de decisão
e influência política no cenário internacional.
Para construir uma
base industrial nesses setores, sólida e sustentável, a Estratégia Nacional de
Defesa (END-2008) lançou a ideia de parcerias com países que possam contribuir para a
transferência e o desenvolvimento de tecnologias de ponta de interesse
nacional.
Vale a pena citar o que a END estipula a respeito:
“O Brasil não deseja ser mero comprador ou cliente de
empresas estrangeiras, mas desenvolver cooperações estratégicas que alavanquem
capacitações autóctones, o que requer a transferência para o território
brasileiro de parte substancial dos esforços de P&D e de produção de
plataformas, sistemas, equipamentos e componentes pretendidos [...]. Tais
parcerias devem contemplar, em princípio, que parte substancial da pesquisa e
da fabricação seja desenvolvida no Brasil, e ganharão relevo maior, quando
forem expressão de associações estratégicas abrangentes.”
A importância de parcerias estratégias, tais como
descritas pela END, reside no reconhecimento de que, nas
condições atuais de avanço tecnológico do Brasil, a autonomia de tecnologias e a
capacidade industrial não
têm como ser alcançadas de modo autárquico. O objetivo é a autonomia
estratégica, não a autossuficiência.
As parcerias
representam, assim, a oportunidade de economizar décadas de trabalho, além de
dezenas de bilhões de reais que seriam despendidos a mais, se o caminho da
autarquiafosse escolhido.
Parcerias estruturantes
que envolvem capacitação industrial, de alta tecnologia e de recursos humanos
são, contudo, excepcionais.
Isto porque tais
parcerias transcrevem ato político e diplomático fundado na mais profunda
confiança recíproca e no compartilhamento de valores e de visões política e
geopolítica.
Tais
parcerias vinculam governos, Forças Armadas e empresas por décadas, em função
do longo ciclo de produção de armamentos e de sistemas espaciais e
aeronáuticos. Considerando a complexidade dos programas e a sua natureza
sensível, tais parcerias exigem esforço de coordenação política permanente
entre os governos.
O número de
países interessados e dispostos a travar parcerias em alta tecnologia é
consideravelmente restrito, uma vez que:
i)
Pouquíssimos países detêm tecnologia
avançada em todo o leque das indústrias estratégicas (aeronáutica, naval,
espacial, mísseis, nuclear, eletrônica, computação de alto desempenho, sistemas
avançados de transporte). De fato, só quatro potências no mundo adquiriram todo
esse leque de competências: Estados Unidos, França, Rússia e, cada vez mais,
China;
ii)
O acesso a tecnologias de ponta e tecnologias sensíveis
altera a estratificação do poder no cenário
internacional;
iii)
As tecnologias estratégicas na área de
defesa são geralmente submetidas a restrições de comércio e certificações
diversas;
iv)
As tecnologias encontram-se, muitas vezes,
protegidas por sistemas de direitos de propriedade intelectual
ou preservadas sob a forma de segredo industrial;
v)
As tecnologias de ponta e sensíveis foram,
em geral, objeto de vultosos financiamentos governamentais, ao longo de
décadas, que possibilitaram a consolidação de indústrias estratégicas (polos de
excelência e de competitividade em seus países – o caso da França desde De
Gaulle). Existe, muitas vezes, por parte da opinião pública e das empresas
desses países, o temor de que, ao repassar essas tecnologias, estariam criando
seus futuros competidores.
Das grandes potências
dotadas autonomamente de todos os atributos tecnológicos, apenas uma
identificou no Brasil o parceiro ideal para somar esforços e adquirir escala.
Apenas uma ofereceu condições máximas de acesso a tecnologias avançadas. Apenas
uma,ao apoiar inequivocamente a concessão ao Brasil de assento permanente no
Conselho de Segurança, sinalizou considerar a ascensão brasileira à condição de
grande potência como algo que atende a seus próprios interesses.
Essa potência é a França.
A França
é uma potência tecnologicamente avançada, dotada de uma indústria de defesa
completa. É proprietária de sua tecnologia, sendo, por isso, capaz de e
independente para transferi-la,
A
França está disposta a transferir tecnologia e o tem feito com o Brasil, projetando
e fabricando em conjunto, o que é a melhor forma de transferência de
tecnologia. Os nossos interesses e necessidades são complementares: o Brasil quer ganhar capacitação tecnológica e industrial e
a França busca escala e margem para competir no cada vez mais aguerrido mercado
mundial.
A cooperação Brasil-França
é, de fato, um caso emblemático de parceria estratégica e, por enquanto, um
caso único, em termos de real capacitação industrial e tecnológica nacional,
tendo no Prosub seu principal “garoto-propaganda”.
O Prosub, em cuja
negociação estive profundamente envolvido, é umprograma complexo do ponto de
vista tecnológico, de longo prazo do ponto de vista de sua execução e de alta
sensibilidade política, tendo em vista as tecnologias implicadas (interface
nuclear, sistemas de combate etc).
O Prosub é o maior empreendimento de cooperação
internacional, tanto do Brasil como da França, na área de defesa e talvez o
único dessa natureza no mundo.
Sua execução está sendo um
sucesso. É a prova de que, com confiança e respeito, é possível cooperar em
domínios sensíveis. A transferência de tecnologia está efetivamente ocorrendo,
assim como o esforço de nacionalização da produção. Mais de 210 engenheiros e técnicos da
Marinha do Brasil já foram treinados na França, além de pessoal de empresas
brasileiras envolvidas no projeto, em áreas sensíveis como concepção de
submarinos e sistemas de combate.
As oportunidades
no campo da aeronáutica e do espaço são imensas. Nesses setores também existe o
compromisso francês de transferência de tecnologia, capacitação de pessoal,
adensamento da malha industrial e formação de empresas brasileiras sólidas.
Causa-me
constrangimento ver que países menos desenvolvidos que o Brasil já
desenvolveram foguetes lançadores e colocaram satélites em órbita.
Se o potencial
salta aos olhos, é inegável, por outro lado, que a concretização da parceria
ainda depende de certo grau de visão política dos dois lados.
O começo do século
21, com o fim da secular hegemonia ocidental e o delineamento de um mundo
verdadeiramente multipolar, coloca, tanto para o Brasil, quanto para a França,
a questão de quais parcerias deverão ser priorizadas para que cada um se
mantenha competitivo em relação aos dois gigantes, Estados Unidos e China, e aos
demais pólos de poder.
Por isso é que,
dentre as parcerias possíveis, estou convencido de que a parceria Brasil-França
é a única que se pode qualificar de verdadeiramente autêntica. Muito além da
complementariedade industrial e econômica, a parceria se funda na proximidade
cultural, no regime político democrático, no intercâmbio humano frequente e na semelhança
de visão de mundo.
Muito obrigado
pela atenção.
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