sábado, 31 de março de 2012

Banco dos BRICs, Banco do Sul e Crise - Marcelo Zero

Banco dos BRICs, Banco do Sul e Crise


Marcelo Zero (assessor da bancada do PT no Senado)

O principal resultado da última reunião dos BRICs, realizada neste mês de março em Nova Déli, foi a decisão desses países emergentes de estudar a criação de um banco de desenvolvimento, em moldes similares aos do Banco Mundial.

Na realidade, essa ideia já havia sido aventada em 2009, por iniciativa da China. Naquela época (e ainda hoje), a reação da mídia nativa foi (e é), de um modo geral, hostil à proposição. São levantadas dúvidas sobre os condicionantes dos futuros empréstimos, sobre a capacidade desses países em concretizar a proposta, sobre a conveniência para o Brasil em aderir à iniciativa, etc.

Observe-se que essa reação negativa também se verificou quando, em 2007, foi proposta a criação do “Banco do Sul”, no âmbito da Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Nesse caso específico, as reações foram ainda mais duras, pois a iniciativa veio de Hugo Chávez e Néstor Kirchner. Muitos alegaram que tal banco se converteria numa espécie de sucedâneo excludente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BIRD) para a região, e seria administrado sem critérios técnicos consistentes, ao sabor de conveniências políticas de ocasião.

O pressuposto básico dessas reações diz respeito à ideia de que a atual arquitetura financeira internacional é adequada aos interesses de todos os países e que as principais instituições financeiras multilaterais, o FMI e ao Banco Mundial, funcionam de maneira eficaz, conforme as “regras universais da economia de mercado” e os princípios da “boa economia”.

A bem da verdade, a atual crise demonstrou cabalmente que se há uma coisa que não funciona eficazmente é a arquitetura financeira internacional e as instituições financeiras multilaterais. Essa arquitetura desregulada, que incentiva a formação de bolhas especulativas e o fluxo assimétrico e predatório de capitais financeiros teve papel decisivo para a conformação do presente quadro recessivo da economia mundial. Por sua vez, as principais instituições financeiras multilaterais, principalmente o FMI, com suas ações pró-cíclicas, sempre foram incapazes de enfrentar eficazmente as crises, contribuindo muitas vezes para agravá-las.

Ademais, essa arquitetura financeira e suas instituições multilaterais já não são mais condizentes com a nova geoeconomia mundial, na qual os países emergentes têm protagonismo crescente e os tradicionais países hegemônicos, que ainda dominam tais instituições, têm decrescente peso específico.

A China, por exemplo, que tem quase US$ 3 trilhões em reservas preocupa-se, obviamente, com a hegemonia do dólar como reserva internacional de valor e como vetor comercial de troca. A equação e simples: cerca de 70% das reservas internacionais são em dólar, ao passo que o peso decrescente da economia dos EUA na economia mundial é de menos de 25%. Ademais, o dólar é a moeda de troca em mais de 80% do comércio mundial, sendo que o euro é praticamente responsável por todo o resto.

Tal disparidade gera uma vantagem desproporcional para as economias norte-americana e europeia. O governo dos EUA e, em menor medida, a União Europeia podem inundar o mercado mundial com suas moedas, retirando competitividade das exportações para o mercado norte-americano e europeu e aumentando artificialmente a competitividade dos produtos Made in USA e Made in Europe.

Conforme já denunciaram a própria presidenta Dilma Rousseff e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, isso vem sendo feito, no contexto da atual crise econômica. Trata-se da “guerra cambial”, uma forma perversa de protecionismo não tarifário. Assim, os EUA e a União Europeia exportam seus desequilíbrios para o mundo. É uma forma de internacionalizar os custos do combate à recessão interna.

A adoção de uma moeda comum comercial pelos BRICs ou, por exemplo, pelo Mercosul ou pela Unasul, ajudaria a combater a hegemonia do dólar e do euro e seu uso como instrumento protecionista no comércio internacional. Ademais, a sua adoção tenderia a dinamizar e aumentar o comércio entre os países propositores.

Tal possibilidade está explícita nos comunicados da reunião dos BRICs e expressa no artigo 3º do Convênio Constitutivo do Banco do Sul, hoje tramitando no Congresso Nacional, o qual define, como uma das funções desse banco, contribuir para o desenvolvimento de um sistema monetário regional, o que é perfeitamente condizente com o processo de integração do subcontinente.

Com efeito, processos de integração tendem a conformar mecanismos financeiros para facilitar o comércio regional. Parece-nos oportuno recordar que, no âmbito das relações bilaterais Brasil/Argentina, já foi implementado mecanismo para o comércio regional. Trata-se do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), que começou a funcionar em outubro de 2008. Entre aquela data e março de 2011, foi comercializado o equivalente a US$ 882 milhões, com esse sistema. O Uruguai já manifestou seu interesse em participar do sistema. No âmbito da Associação Latino-americana de Integração (ALADI), o chamado Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR), que prescinde de moedas internacionais, já subvenciona muitos projetos de investimentos em infraestrutura em toda América do Sul.

É preciso que fique claro, no entanto, que tais moedas ou sistemas monetários a serem eventualmente criados não teriam a mesma natureza do euro. Elas seriam apenas moedas a serem usada nas transações comerciais entre os países. Uma verdadeira moeda comum demandaria a complexa e difícil harmonização das políticas macroeconômicas, o que ainda não está, obviamente, no cenário da Unasul e dos BRICs.

Mas além de dinamizar o comércio entre os países e de neutralizar, até certo ponto, o protecionismo cambial das nações hegemônicas e as assimetrias da arquitetura financeira internacional, a constituição desses dois bancos poderá contribuir para eliminar os gargalos financeiros relativos aos investimentos diretos necessários para o desenvolvimento econômico e social, particularmente em nossa região.

Muito embora estejam presentes em projetos na América do Sul várias instituições financeiras regionais e mundiais, tais como a Corporación Andina de Fomento (CAF), o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Fundo da Bacia do Prata (Fonplata), o Banco Latino-americano de Exportações (BLADEX) e o Fundo Latino-americano de Reservas (FLAR), além do fundo específico do Mercosul- Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), é preciso considerar que, por diversos motivos (restrições jurídicas, reservas financeiras insuficientes, etc.), elas não conseguem equacionar o claro déficit de investimentos que há na região.

A América do Sul, cujo PIB cresceu a uma média de 5,8% ao ano ao longo da última década, já tem uma economia de porte semelhante à da China. Seu poder de compra, cerca de US$ 4 trilhões de dólares, já ultrapassa o do Japão. Sua corrente de comércio alcançou US$ 1 trilhão de dólares, em 2011. Além disso, a América do Sul já é o segundo mercado mundial para itens como celulares e helicópteros.

Entretanto, apesar desses grandes avanços recentes, em boa parte impulsionados pelo Brasil, e do seu enorme potencial, a América do Sul ainda tem significativas carências e problemas, em termos de infraestrutura, desigualdades sociais e de assimetrias entre os países. Evidentemente, todos esses estrangulamentos repercutem negativamente no processo de integração regional.

Portanto, a criação do Banco do Sul, nos moldes propostos em seu Convênio Constitutivo, isto é, como banco de desenvolvimento e de investimentos da Unasul, deverá ter papel muito positivo para os países da América do Sul e, particularmente, para a integração regional. Projetos relativos à construção de estradas, ferrovias, hidrovias e portos, ao equacionamento das necessidades de abastecimento de energia para a região, ao desenvolvimento sustentável da América do Sul, à integração das cadeias produtivas, à redução das assimetrias entre os países e entre os cidadãos, à educação, ciência e tecnologia, entre muitos outros, poderão ser agilizados e robustecidos com o aporte de recursos desse novo banco regional.

Observe-se que o Brasil, na condição de maior economia da América do Sul, tem muito a ganhar com a dinamização do processo de integração regional e com o crescimento de seus vizinhos. Ao contrário do que afirmam alguns, o nosso país é o maior beneficiário do processo de integração do Mercosul e da Unasul. Temos superávits comerciais alentados com quase todos os países da região.

No ano passado (2011), exportamos cerca de US$ 50 bilhões para a ALADI, dos quais cerca de US$ 40 bilhões foram de produtos manufaturados. Ou seja, 80% das nossas exportações para a região foram de produtos industrializados. No Mercosul, essa proporção é ainda maior: 93%. Tal desempenho resultou num superávit de US$ 13,5 bilhões, 45% do nosso superávit total. Nosso comércio exterior, particularmente nosso comércio exterior de produtos industrializados, depende muito da integração regional e da prosperidade de nossos vizinhos.

Ademais, a América do Sul é uma das regiões que mais recebe investimentos diretos do Brasil. Há, de fato, dezenas de bilhões de dólares de investimentos brasileiros no subcontinente, que beneficiam muitas empresas nacionais e geram empregos qualificados para nossos cidadãos.

Considere-se, adicionalmente, que a Unasul, além de ter uma dimensão comercial econômica própria, tem também uma relevante dimensão político-diplomática, que já se desdobra na conformação de uma geoestratégia comum, plasmada em seu Conselho de Defesa.

Para o Brasil, a Unasul representa a consolidação formal de seu protagonismo na América do Sul, diretriz-chave da sua política externa. Diretriz esta que vem produzindo resultados muito positivos. O Brasil é hoje um ator internacional de primeira grandeza em boa parte porque é um líder regional indiscutível, que contribui para a prosperidade de seus vizinhos. Por conseguinte, a dinamização da integração regional que será proporcionada pelo Banco do Sul interessa ao Brasil. Investir na integração regional é investir política e economicamente em nosso país.

Em relação à China e aos demais BRICs, a nossa relação é estratégica, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista político-diplomático.

Embora concentrado em commodities, o nosso comércio bilateral com a China é francamente superavitário. No ano passado (2011), tivemos US$ 11, 5 bilhões de superávit. Nos últimos três anos, foram mais de US$ 20 bilhões de superávit, algo muito importante, num cenário de crise internacional. Em contrapartida, com os EUA tivemos, em 2011, mais de US$ 8 bilhões de déficit.

Entretanto, dos US$ 44 bilhões que exportamos para a China em 2011, apenas US$ 2 bilhões foram de manufaturados, ao passo que, dos US$ 25 bilhões que exportamos para os EUA, mais de US$ 11 bilhões foram de produtos industrializados. Obviamente, isso gera desconfianças e resistências no Brasil, em relação àquele país.

Porém, há espaço, nas nossas relações bilaterais, para uma maior cooperação tecnológica e industrial com a China. Nesse sentido, a criação do Banco dos BRICs poderia contribuir não apenas para dinamizar ainda mais o comércio bilateral, mas também para propiciar investimentos destinados a aumentar a competitividade da nossa indústria de transformação, dentro da perspectiva de uma maior integração das cadeias produtivas de ambos os países.

É necessário levar em consideração que a continuidade da crise mundial, agora agravada na Europa, poderá desacelerar o crescimento dos países emergentes. Isso teria eventualmente como consequência a necessidade da China investir mais em seu mercado interno, em detrimento da atual ênfase excessiva nas exportações.

Essa possível mudança de estratégia econômica deverá, de um lado, reduzir o dinamismo das exportações chinesas e, de outro, abrir mais o mercado interno chinês para produtos, serviços e investimentos externos. A China ainda tem centenas de milhões de pessoas excluídas ou parcialmente excluídas do mercado de consumo. Quando esses indivíduos passarem a consumir mais, será aberto um espaço não apenas para mais exportações de commodities, mas também para produtos manufaturados.

O Brasil pode e deve se posicionar bem para aproveitar as possíveis novas oportunidades que poderão se abrir com tais mudanças.

O mesmo raciocínio também se aplica aos demais BRICs. Na realidade, o nosso potencial de cooperação com esses países ainda está em nível muito incipiente, especialmente com a Índia, outro gigante demográfico que cresce a taxas expressivas. Há muito a ser explorado.

O êxito estratégico e econômico recente do Brasil, que se mantém apesar da crise, se explica por dois fatores essenciais. No plano interno, pela distribuição de renda e a incorporação de dezenas de milhões de brasileiros ao mercado de consumo de massa, o que nos permite manter dinamismo econômico, mesmo com estrangulamentos externos. No plano externo, pela aposta estratégica na integração regional e na cooperação Sul-Sul, que abriu novos grandes mercados para os produtos e serviços brasileiros e nos tornou consideravelmente menos dependentes das antigas nações hegemônicas, hoje muito castigadas pela crise.

A crise internacional deverá consolidar e aprofundar as mudanças geoeconômicas que deslocaram o centro dinâmico da economia mundial para os países emergentes. Tais países têm de aproveitar a atual conjuntura para investir mais na cooperação, na maior integração de suas economias e na conformação de uma ordem internacional menos assimétrica e mais multilateral e dinâmica. Nesse processo, a antiga arquitetura financeira internacional e suas instituições financeiras multilaterais, caudatárias de uma ordem econômica internacional que não mais se sustenta, terão de ser reformuladas. Tal reformulação dificilmente virá das nações que delas se beneficiaram e se beneficiam.

Assim sendo, a criação do Banco dos BRICs e do Banco do Sul, na medida em apresentam alternativas viáveis às instituições financeiras multilaterais e tendem a dinamizar o comércio e os fluxos de investimentos entre os países emergentes, além de se contrapor ao protecionismo não tarifário daqueles que emitem as moedas hegemônicas, representa passo significativo para o surgimento de uma ordem econômica internacional mais simétrica.

O Brasil, na condição de país beneficiário das mudanças políticas e econômicas mundiais, tem tudo a ganhar com a criação dessas novas instituições financeiras.

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