Um ano antes das Olimpíadas de 2008, 38 pessoas foram presas na China por suspeitas de corrupção, prática que levou ao desvio de pelo menos US$ 15,8 milhões destinados aos jogos, mas gastos em apartamentos para os dirigentes que comandavam o evento. No ano passado, o ex-presidente do comitê organizador dos Jogos Britânicos, realizados na Índia em 2010, foi preso sob a acusação de participar de um esquema que teria desviado US$ 1,8 bilhão dos US$ 6 bilhões orçados para a competição - coincidência ou não, o forro do principal estádio do evento desabou dias antes de seu início. Não há como impedir que episódios como esses ocorram, mas o Brasil pode usar a experiência de seus colegas de Bric (Rússia, Índia e China) e dar um passo para evitá-los. Nesta semana pode ser votado o Projeto de Lei nº 6.826, que, se aprovado, permitirá a punição de empresas que cometam atos de corrupção. Na prática, significa mirar o corruptor, e não apenas o corrupto, como ocorre hoje.
Chamado de "PL anticorrupção", o projeto tramita em caráter conclusivo em uma comissão especial da Câmara dos Deputados. Se a maioria dos deputados que a compõem decidir pela sua aprovação, a proposta segue direto para o Senado. E, se votada e aprovada em tempo hábil, poderá ser aplicada tanto na Copa do Mundo de 2014 quanto na Olimpíada de 2016, que serão realizadas no Brasil.
O projeto, obviamente, não objetiva apenas a lisura dos dois eventos, tampouco garante que ambos ficarão livres de se tornarem um "esporteduto" para o desvio de dinheiro público. As obras da Copa já estão em andamento e duas delas, inclusive, foram abandonadas por uma das vencedoras das licitações - a Delta Construções, envolvida na CPI do Cachoeira, que investiga as relações de agentes públicos e privados com o esquema de exploração ilegal de jogos de azar de Carlos Augusto Ramos. Mas, se o PL anticorrupção passar pelo Congresso Nacional como está, pode garantir ao menos que empresas corruptoras sejam punidas. E que as punições sirvam de exemplo para quem pretende engordar seu cofre pessoal com dinheiro público.
A grande novidade da proposta é a possibilidade de responsabilização objetiva de empresas que praticarem atos lesivos à administração pública ou que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro. Na prática, não será necessário provar, na esfera administrativa ou na Justiça, que a empresa cometeu algum ilícito. Bastará que ela tenha sido beneficiada pelos atos ilícitos cometidos por seus representantes para que possa ser punida (veja quadro abaixo).
Hoje a legislação brasileira permite apenas a punição de pessoas físicas por corrupção, mesmo que elas tenham agido em benefício de uma empresa. A empresa pode ser punida apenas com a inserção de seu nome no cadastro de inidôneas, que a impede de participar de licitações e contratar com o setor público por um determinado período. Pelo projeto, a punição pode incluir multas de até 20% do faturamento bruto da empresa, o veto à concessão de empréstimos em bancos públicos, a rescisão de contratos com o poder público e até mesmo a suspensão de suas atividades.
É a responsabilidade objetiva o maior entrave à aprovação do projeto. De acordo com o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), relator do PL na comissão especial da Câmara, as empresas, por meio de diversos deputados, têm reclamado justamente desse ponto da proposta. "Agora que caiu a ficha o pessoal começou a se mobilizar", diz. "Mas a responsabilidade objetiva é o centro do projeto, não vai ser negociada."
Das 35 emendas apresentadas ao texto original do projeto, 7 excluíam a responsabilidade objetiva da empresa. Elas foram propostas pelos deputados Edio Lopes (PMDB-RR), responsável por 4 delas; Natan Donadon (PMDB-RO), com duas emendas no mesmo sentido; e João Magalhães (PMDB-MG), com uma. Já o substitutivo ao projeto recebeu 13 emendas, três delas, de autoria do deputado Laercio Oliveira (PR-SE), pretendiam retirar do texto a responsabilidade objetiva. Todas as emendas foram rejeitadas. "Mas pelo menos mais 10 deputados me procuraram com a mesma intenção", diz Carlos Zarattini. Nesta semana, o relator está conversando com o Executivo, autor da proposta, e com deputados para chegar a um consenso sobre o texto final. Caso isso ocorra, o PL poderá ser votado amanhã na comissão especial ou no plenário, já que não há medidas provisórias trancando a pauta da Câmara. "Estamos na fase de discussão palavra por palavra", afirma Zarattini. A votação na comissão especial já foi marcada e adiada por duas vezes.
O Valor procurou associações representativas de empresas para colher delas suas opiniões sobre o PL anticorrupção. Até o fechamento desta edição, não se manifestaram a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que informou que não faz comentários sobre projetos de lei em tramitação; a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), que não retornou aos pedidos de entrevista da reportagem; e a Associação Paulista dos Empresários de Obras Públicas (Apeop), que reúne 108 empreiteiras - entre elas as cinco maiores do país (Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Odebrecht, OAS e Queiroz Galvão) - e também não retornou as ligações.
Apenas a Confederação Nacional da Indústria (CNI) se manifestou. O advogado Sérgio Campinho, consultor jurídico indicado como porta-voz da entidade para falar sobre o assunto, afirmou que a CNI, conceitualmente, aprova o projeto e o vê com bons olhos. "O Brasil já está atrasado em fazer uma lei anticorrupção", diz. "A concorrência do mercado exige o fim de práticas anticoncorrenciais, e a corrupção é uma delas." A CNI, no entanto, contesta a responsabilidade objetiva prevista no projeto. "Temos nos colocado contrariamente a esse ponto, porque se trata de responsabilidade sem culpa", afirma. Por outro lado, diz, provar a culpa da empresa é difícil e oneroso para o Estado. Segundo Campinho, a CNI propôs a responsabilidade subjetiva com inversão do ônus da prova ou com presunção de culpa. "Isso daria a possibilidade de a empresa provar que não teve culpa, que pode ter sido até mesmo vítima da atitude de um funcionário, por exemplo", argumenta.
A resistência ao projeto era previsível. Além de tratar de um tema sensível ao meio empresarial - em especial aos setores que tiram do poder público boa parte de seu faturamento, como as empresas dedicadas a obras públicas -, a proposta faz uma profunda alteração na forma como o país enxerga a corrupção. "A reação da sociedade brasileira é a de sempre focar a figura do corrupto, e nunca a do corruptor", diz o advogado Modesto Carvalhosa. "O foco é sempre no juiz que vende sentença e no servidor que vende alvará." Segundo ele, o projeto de lei faz uma grande inovação ao colocar as empresas como passíveis de punição por corrupção. "É a primeira vez que o foco estará no corruptor", diz. "Em qualquer lugar do mundo, quem corrompe é a empresa. É ela quem paga o valor da comissão, e não seu presidente ou seu diretor", afirma. "Desde o fornecedor de leite condensado para a merenda escolar de escolas públicas até as empreiteiras que participam de grandes obras."
Carvalhosa foi membro da Comissão de Notáveis criada durante o governo de Itamar Franco para investigar a corrupção após o impeachment do presidente Fernando Collor. Sua participação resultou na publicação, em 1995, do "Livro Negro da Corrupção", no qual relata casos emblemáticos de desvio de dinheiro público durante escândalos como o dos "anões do orçamento" - grupo de deputados federais que faziam acertos com empreiteiras para destinar recursos públicos a grandes obras em troca de comissões por meio de emendas parlamentares. Para ele, o caso de Carlos Augusto Ramos - o Carlinhos Cachoeira - é uma exceção, por ser o único em que o corruptor é o foco das investigações.
Mesmo se o projeto de lei anticorrupção for aprovado como está e entre em vigor 180 dias depois de sancionado, como prevê seu texto, suas normas não surtirão efeitos para os casos já em andamento. Como o da Delta, maior empreiteira do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que passou a ser alvo da CPI do Cachoeira depois que a Polícia Federal apontou ligações entre um de seus diretores e Carlinhos Cachoeira, preso sob a acusação de liderar um esquema ilegal de jogos de azar. Após o início da crise, a Delta afastou seus principais executivos - entre eles um diretor apontado como interlocutor de Cachoeira -, além de ter abandonado o consórcio responsável pelas melhorias no Maracanã, palco da final da Copa do Mundo, e as obras do entorno do estádio do Castelão, em Fortaleza, também cidade-sede da Copa. A empresa nega qualquer envolvimento em atos de corrupção.
Pela atual legislação, a Delta corre apenas o risco de ser declarada inidônea pela Controladoria-Geral da União (CGU), o que vetaria a possibilidade de participar de licitações e contratar com o governo - o órgão deve se manifestar nesse sentido em breve. Se as investigações avançarem, seus administradores e sócios podem responder a processos criminais na Justiça. Mas, se a lei que prevê a punição de empresas já estivesse em vigor, a própria Delta também poderia ser punida. E mais: a punição seria mantida mesmo após a empreiteira ser comprada pela J&F, holding que controla a processadora de carne JBS e que anunciou, recentemente, a aquisição da Delta. O PL traz essa previsão expressa em casos de fusões e incorporações.
Se a Delta não poderá ser enquadrada nas regras do projeto de lei, tampouco será a Camargo Corrêa, alvo das investigações da Operação Castelo de Areia, deflagrada pela PF em 25 de março de 2009 para investigar supostos crimes de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, corrupção e financiamento ilegal de campanhas eleitorais supostamente cometidos pelo comando da construtora. O processo penal, aberto contra três diretores da empreiteira, foi contestado desde seu início com o argumento de que as provas obtidas pela PF são ilegais. O caso ainda aguarda a análise do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidirá pela continuidade ou anulação da ação criminal. A Operação Castelo de Areia foi, inclusive, uma das motivações para que o Executivo, por meio da CGU, elaborasse o projeto que responsabiliza empresas pela prática de corrupção.
O fato de os dois episódios mais recentes envolvendo suspeitas de corrupção em obras públicas no país excluírem a possibilidade de punição das empresas envolvidas não é boa notícia. Mas, em um país repleto de casos de relações obscuras entre o poder público e o setor privado - e de ruidosos escândalos envolvendo empreiteiras ao longo da história -, dar um passo no sentido de evitar novos episódios é considerado essencial. "O grande desafio é como desvincular o interesse público do privado, e é nas eleições onde isso acontece de uma maneira mais forte", diz Jorge Abrahão, presidente do Instituto Ethos, sugerindo que o financiamento público de campanhas poderia resolver parte do problema.
Juntas, as cinco maiores empreiteiras do país doaram R$ 286,8 milhões para as campanhas eleitorais de diferentes partidos e candidatos durante as eleições de 2010, conforme levantamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Considerando todas as receitas e despesas, foram gastos R$ 3,3 bilhões nas últimas eleições, boa parte proveniente de doações. Mas não se sabe - e são pouquíssimos os casos que já vieram à tona - o tamanho do caixa dois que abastece as legendas e seus titulares. "As pessoas pensam que o financiamento público vai custar mais caro, mas quanto estamos pagando pelo financiamento privado?", questiona Abrahão
Fonte: Valor Econômico, publicado dia 29/05/2012 - http://virou.gr/KqeBOD
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