Meu ponto de vista é que o mensalão não foi apenas caixa 2 para
campanhas eleitorais nem apenas um esquema de desvio de recursos
públicos. Foi uma combinação de ambos, como sempre acontece em sistemas
eleitorais que permitem ao poder econômico privatizar o poder político
com contribuições eleitorais privadas.
Um julgamento justo será aquele capaz de distinguir uma coisa da outra, uma acusação da outra, um réu do outro.
Quem combate o financiamento público de campanha não quer garantir a
liberdade de expressão financeira dos eleitores, como, acredite, alguns
pensadores do Estado mínimo argumentam por aí e nem sempre ficam
ruborizados.
Quer, sim, garantir a colonização do Estado pelo poder econômico,
impedindo que um governo seja produto da equação 1 homem = 1 voto.
É aqui o centro da questão.
Tesoureiros políticos arrecadam para seus candidatos, empresários
fazem contribuições clandestinas e executivos que tem posições de mando
em empresas do Estado ajudam no desvio. Operadores organizam a
arrecadação eleitoral e contam com portas abertas para tocar negócios
privados. Fica tudo em família – quando são pessoas com o mesmo
sobrenome.
Foi assim no mensalão tucano, também, com o mesmo Marcos Valério, as
mesmas agências de publicidade e o mesmo Visanet. Um publicitário
paulista garante pelos filhos que em 2003 participava de reuniões com
Marcos Valério para fazer acertos com tucanos e petistas. Era tudo
igual, no mesmo endereço, duas fases do mesmo espetáculo.
Só não houve igualdade na hora de investigar e julgar. Por decisão
do mesmo tribunal, acusados pelos mesmos crimes, os mesmos personagens
receberam tratamentos diferentes quando vestiam a camisa tucana e quando
vestiam a camisa petista. É tão absurdo que deveriam dizer, em voz
baixa: “Sou ou não sou?” Ou: “Que rei sou eu?”
Mesmo o mensalão do DEM, que, sob certos aspectos, envolveu momentos de muito mau gosto, foi desmembrado.
Diante da hipocrisia absoluta da legislação eleitoral, sua
contrapartida necessária é o discurso moralista, indispensável para dar
uma satisfação ao cidadão comum. Os escândalos geram um sentimento de
revolta e inconformismo, estimulando o coro de “pega ladrão!”,
estimulado para “dar uma satisfação à sociedade” ou para “dar um basta
na impunidade!” Bonito e inócuo. Perverso, também.
Até porque é feito sempre de forma seletiva, controlada, por quem tem
o poder de escolher os inimigos, uma força que está muito acima de onze
juízes. Estes são, acima de tudo, pressionados a andar na linha…
Em 1964, o mais duradouro golpe contra a democracia brasileira em sua
história, teve como um dos motes ilusórios a eliminação da corrupção. O
outro era eliminar a subversão, como nós sabemos. Isso demonstra não só
que a corrupção é antiga mas que a manipulação da denúncia e do
escândalo também é. Também lembra que está sempre associada a uma
motivação política.
Entre aqueles que se tornaram campeões da moralidade de 64, um número
considerável de parlamentares recebeu, um ano e meio antes do golpe,
cinco milhões de dólares da CIA para tentar emparedar João Goulart no
Congresso. Depois do 31 de março essa turma é que deu posse a Ranieri
Mazzilli, alegando que Jango abandonara a presidência embora ele nunca
tenha pedido a renúncia.
Seis anos depois do golpe, o deputado Rubens Paiva, que liderou a CPI
que apurou a distribuição de verbas da CIA e foi cassado logo nos
primeiros dias, foi sequestrado e executado por militares que diziam
combater a subversão e a corrupção. Não informam sequer o que aconteceu
com seu corpo. Está desaparecido e ninguém sabe quem deu a ordem nem
quem executou. Segredo dos que combatiam a subversão e a corrupção,
você entende.
O alvo era outro. A democracia, a sempre insuportável equação de 1 homem = 1 voto.
Eu acho curioso que a oposição e grande parte da imprensa – nem
sempre elas se distinguem, vamos combinar, e recentemente uma executiva
dos jornais disse que eram de fato a mesma coisa – tenham assumido a
perspectiva de associar, quatro décadas depois, a corrupção com aquelas
forças e aquelas ideias que, em 64, se chamavam de subversão.
A coisa pretende ser refinada, embora pratique-se uma antropologia de
segunda mão, uma grosseria impar. Não faltam intelectuais para
associar Estado forte a maior corrupção, proteção social a paternalismo e
distribuição de renda à troca de favores. Ou seja: a simples ideia de
bem-estar social, conforme essa visão, já é um meio caminho da
corrupção.
Bolsa-Família, claro, é compra de votos. Como o mensalão, ainda que
nenhuma das 300 testemunhas ouvidas no inquérito tenha confirmado isso e
o próprio calendário das votações desminta uma conexão entre uma coisa e
outra. Roberto Jefferson disse, na Policia Federal, que o mensalão era
uma “criação mental” mas a denúncia reafirma que a distribuição de
recursos era compra de consciência, era corrupção – você já viu aonde
essa turma pretende chegar.
A corrupção dos subversivos é intolerável enquanto a dos amigos de sempre vai para debaixo do tapete.
Desse ponto de vista, eu acho mesmo que o julgamento tem um sentido
histórico. Não por ser inédito, mas por ser repetitivo, por representar
uma nova tentativa de ajuste de contas. Não é uma farsa, como lembrou
Bob Fernandes num comentário que você deve procurar na internet.
A farsa é o contexto.
Veja quantas iniciativas já ocorreram. O desmembramento, que só foi
oferecido aos tucanos. O fatiamento, que nunca havia ocorrido num
processo penal e que apanhou o revisor de surpresa.
Agora que a mudança de regras garantiu que Cezar Peluso possa votar
pelo menos em algumas fases do processo (“é melhor do que nada”, diz o
procurador geral) já se coloca uma outra questão: o que acontece se o
plenário, reduzido a dez, votar em empate? Valerá a regra histórica, que
eu aprendi com uns oito anos de idade, pela qual em dúvida os réus se
beneficiam? Ou o presidente Ayres Britto irá votar duas vezes?
E, se, mesmo assim, houver uma minoria de quatro votos, o que
acontece? Vai-se aceitar a ideia de que é possível tentar um recurso?
Ali, no arquivo das possibilidades eventuais, surgiu uma conversa do
ministro Toffoli, às 2 e meia da manhã, numa festa em Brasília. Já tem
sido usada para dar liçãozinha de moral no ministro. No vale-tudo,
servirá para criar constrangimento.
Enquanto isso, os visitantes que chegam a Praça dos Três Poderes
demonstram mais interesse em tirar foto turística para o facebook do que
em seguir os debates, como revelou reportagem de O Globo. Calma. O
julgamento não vai ser tão rápido como se gostaria. Com a cobertura
diária no horário nobre, manchetes frequentes, é possível mudar isso…
Minha mãe ria muito de uma vizinha, que dias antes do 31 de março de
64 foi às ruas de São Paulo protestar a favor de Deus, da Família,
contra a corrupção e a subversão. Quando essa vizinha descobriu, era um
pouco tarde demais e a filha dela já tinha virado base de apoio da
guerrilha do PC do B. O diplomata e historiador Muniz Bandeira conta
que a CIA trouxe até padre americano para ajudar na organização
daqueles protestos.
A marcha de 64 foi um sucesso, escreveu o embaixador norte-americano
Lincoln Gordon, num despacho enviado a seus chefes em Washington, já
envolvidos no apoio e nos preparativos do golpe. Mas era uma pena,
reparou Gordon, que havia poucos trabalhadores e homens do povo.
Fonte: Luis Nassif Online - http://virou.gr/Q4dxnb
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